Em várias análises recentes sobre o desempenho dos alunos portugueses (níveis de insucesso, resultados dos PISA) a Educação e as eventuais “reformas” de que necessita é muito comum que se sublinhe o facto de em Portugal os alunos desfavorecidos em termos socio-económicos continuarem a ter, em regra, níveis abaixo da média de sucesso. Para além de isso não ser uma constatação inovadora, é habitual associar-se a tal evidência uma série de considerações sobre o “fracasso” da Educação como “elevador social” e factor de mobilidade social como durante muito tempo se considerou ser uma das suas principais funções.
De acordo com esta visão, a Educação deverá ser capaz de eliminar ou, no mínimo, atenuar fortemente a situação de desigualdade de condições de vida e rendimentos das famílias que, ao longo das últimas décadas, não revelou nenhuma tendência significativa de convergência. Como se, do portão das escolas para dentro, acontecesse algo do domínio da “sociologia mágica” que permitisse que fossem apagados os fortíssimos factores de desigualdade que existem a montante, jusante e em torno do sistema educativo.
Numa sociedade em que os direitos sociais estão em regressão, numa economia em que se verificou uma redução sensível dos rendimentos (em especial dos reais, após a carga fiscal que sobre eles recai de forma directa ou indirecta) e se deu uma rendição completa aos mecanismos neoliberais de precarização das condições laborais, parece que a Educação é encarada como um oásis onde é possível alcançar o que se revelou impossível nas restantes áreas da vida social. Quando o sistema de Saúde dá sinais de colapso e diversos indicadores começam a recuar para níveis de há décadas e especialistas em Segurança Social projectam uma “quebra abrupta nos rendimentos” dos cidadãos, há governantes e “cientistas da educação” que parecem querer fazer-nos crer que serão medidas como a eliminação à força dos níveis de insucesso no Ensino Básico ou a supressão de exames e provas de avaliação externa na escolaridade obrigatória, a par de medidas de perfeita cosmética curricular, que conseguirão reanimar o funcionamento de um “elevador social” que não tem andares superiores para alcançar, em especial se os seus ocupantes vierem das caves da actual estrutura social.
É de uma demagogia despudorada afirmar-se que será por transitar todos os anos com um nível mínimo de “competências”, que alunos de níveis socio-económicos mais baixos conseguirão uma elevação do seu estatuto ou atingir rendimentos médios sensivelmente superiores aos da geração anterior. A mobilidade social no século XXI, em especial em sociedades marcadas por um subdesenvolvimento endémico e fortes práticas de clientelismo e nepotismo, depende muito pouco do “sucesso escolar” e muito mais de outros factores como as redes de conhecimentos pessoais e familiares. A “reprodução das desigualdades” não é uma responsabilidade ou sinal de “fracasso” da Educação. Apenas significa que ela deixou de ser o factor (ou sequer um dos factores) com maior peso nas possibilidades de mobilidade ascensional dos indivíduos, tendo sido substituída de forma bastante determinista pelas condições do contexto familiar.
Pelo contrário, tem-se verificado nestes anos do século XXI fenómenos bem evidentes de proletarização de classes profissionais qualificadas e a erosão crescente da condição material de parte de uma classe média com níveis elevados de escolarização.
A Educação tem sido usada como recurso para tentar mascarar o fracasso de outras políticas sociais, usando medidas como o empréstimo de manuais escolares (porque não são oferecidos), como antes existiu a distribuição dos computadores Magalhães. Quando tanto se fala na escola como ainda estando organizada à imagem da lógica fabril do século XIX, esconde-se que a lógica da “escola a tempo inteiro” é a antítese do que se passa nos países de maior desenvolvimento humano. A “escola-fábrica” é aquela onde as famílias de menores meios e condições de trabalho mais precárias são obrigadas a depositar as suas crianças e jovens de sol a sol.
A Educação só poderia ter falhado como “elevador social” se o “edifício” não estivesse fortemente compartimentado e no século XXI a mobilidade social não estivesse mais dependente do estatuto pré-existente do meio familiar do que das capacidades individuais. A sociedade ocidental do século XXI perdeu a dimensão meritocrática que marcou o século XX. E não há níveis de sucesso escolar que possam ocultar isso.